segunda-feira, 26 de janeiro de 2009

Entrevista com Ozualdo Candeias / 2° Parte

Por Ruy Gardnier (agosto de 1999)

CINEMA, PRIMITIVO, MARGINAL

Uma pergunta que eu queria fazer também é relativa a você filmar alguma coisa que geralmente o brasileiro não quer ver, quer esconder, quer botar por debaixo do pano, que ele até admite que tenha na esquina dele mas que ele não admite ver num filme.
Nesses meus filmes eu fui um pouco além disso ainda. As pessoas além de não quererem ver, ainda se aborrecem. Mas eu tenho dito pra muita gente que às vezes me perguntam, gente bem intencionada até, e que me diz "poxa, por que que você faz um negócio desse, o Brasil com tanta coisa bonita...", aquela história toda. E a minha resposta é sempre mais ou menos a seguinte: "olha, se ninguém mostrar o que está no Brasil pra ser feito e que deve ser feito, um dia os responsáveis podem alegar ignorância, né?" Então eu fazendo isso e outros de outras mídias fazendo, pelo menos pode até ajudar os caras. Ainda eu sigo, por exemplo. Eu estava falando que o governo não toma uma série de providências objetivas com relação ao mercado pra fita brasileira, e um cara chegou pra mim e disse: "mas o que é isso? por que vocês não vão falar isso pro governo porque vai ver que eles não sabem?". Eu falei que eles têm obrigação de saber porque isso que eu estou criticando, esse trabalho que foi feito tem quarenta anos, que uma vez virou Instituto Nacional de Cinema e depois virou Embrafilme, de maneira que o governo está sabendo de tudo isso. Normalmente as pessoas aceitam. É que a minha maneira de apresentar é um pouco crua. As pessoas parece que ficam um pouco chocadas.

Você faz pra chocar?
Eu faço sim. Não é bem assim, eu faço porque acho que aquilo tem que ser feito e eu acho que quando eu faço as coisas meio documentais, eu faço elas mais ou menos como são que é para que possa se ter referencial hoje ou daqui a cinqüenta, dez anos, ou quem for lá para trás também. Porque se eu puser já a minha estilização, cor, puramente na minha visão, seja maniqueísta ou não, eu acho que não é bom. Então eu acho que toda coisa que é um pouco documentária tem que ser meio crua, que é para você poder trabalhar em cima dela. Se você elaborar ela muito, fica meia-boca. O Cangaceiro do Lima Barreto... Na verdade foi um cangaceiro muito bem elaborado que aquilo não é cangaço. Mas a estilização dele parece que resultou muito bem... Não fosse aquilo não haveria tanta fita com o cangaço.

Tem uma diferença, porque os seus filmes têm um conteúdo político muito forte, e o filme do Mojica, O Despertar da Besta, tem um conteúdo político muito forte também. Mas ele pode ser interpretado como só um filme de terror, uma ficção de terror, enquanto o seu não, o seu tem que ser exigido como aquilo que tá lá, porque você está filmando a rua, e não um delírio, está filmando as pessoas do jeito que elas são...
Até eu acho que os meus filmes não têm muita semelhança com nenhum do Mojica, que eu conheço bem as fitas dele, e o Meia-Noite fui eu que preparei toda produção pra ele fazer. Para ele, não, para o sócio dele, porque ele tinha um sócio... o sócio é que fazia, o sócio era o mauzinho e ele era o bonzinho. Pra tomar o dinheiro do pessoal por aí. E o sócio dele arrumava dinheiro emprestado, e o Mojica quando a gente passou a tratar da produção, eu levei eles para ver locais, e o Mojica gosta muito de andar de carro, mas na época tinha um certo receio e tal. Depois de eu ter preparado todo o roteiro pra produção, eu fiquei sabendo que ele queria fazer um horror inglês... Ele andava comigo dizendo que eu tinha que arrumar um castelo para ele, que era horror inglês, com mordomo e tudo. Eu falei "Mojica, tira isso da cabeça. Primeiro que não tem castelo, vocês não têm dinheiro pra fazer isso, e vai daí afora." Aí eu levei ele pra ver um casarão e tudo mais, e aquelas coisas de objetos de cena que tem dentro da fita fui eu que arrumei tudo. A sala dele, aquele negócio de parede ornamentada com membros humanos, cabeça, isso e aquilo, a cenografia como fizeram, o cara não entendeu e deve ter ficado melhor do que eu tinha pensado. Mas tudo isso eu já dei, mas era pra pintar o personagem. Uma coisa de cinema acadêmico mesmo, né? Agora, dado um certo primarismo dele e da pobreza da produção, resultou naquilo que foi feito.

O Meia-Noite ou o Esta Noite?
O Encarnarei (Esta Noite Encarnarei no Teu Cadáver, n.d.e.) Eu também tinha feito pra ele a produção de uma fita chamada Meu Destino em Tuas Mãos. E vai daqui vai dali e o produtor dele queria fazer outra fita. O primeiro filme dele, que é o Na Sina do Aventureiro, foi lançado e deu um dinheiro muito bom no relançamento. No lançamento não deu praticamente nada. Então na segunda vez eles queriam fazer o Destino. O Meu Destino também não deu nada, aí começou a não saber o que fazia, se fazia Marcelino Pão e Vinho, se fazia fita religiosa, e eu escrevi um negócio que eu queria fazer, que é o lobisomem. Mas um lobisomem brasileiro, com toda tradição cultural brasileira. E eles gostaram mais ou menos só que o Mojica gosta mais da coisa espetacular e disse: "olha, vamos fazer um negócio aqui com o teu argumento, topa?" Eu falei: não, no meu argumento, não, eu já sei que não é o que você quer. Aí ele inventou o Meia-Noite. Quer dizer, não foi ele que inventou, quem faz o negócio é o Luchetti, é ele que faz o roteiro. A idéia foi dele fazer isso, mas eu que soprei primeiro.

Mas a idéia de fazer um personagem brasileiro, mesmo...
O meu é um lobisomem brasileiro. A idéia do personagem que ele fez é dele, não é minha. A minha é de fazer o horror. Na minha opinião, não é também horror assombração. Foi ele que começou a falar em horror. Como ele é um cara de periferia e chegado nessas brasilidades, lia muito gibi, então lá no bairro dele o dono da funerária chama Zé do Caixão, o cara que trabalha na feira é o Zé da Feira, e vai daí por diante. E ele pôs então o Zé do Caixão, que é um negócio muito bem achado.

Te agrada o estilo do Mojica?
Não, eu não gosto. Primeiro que o estilo dele é o cinema de ninguém. Por duas razões, ele fez uns dois ou três filmes razoáveis. Isso no momento em que ele estava mais ou menos começando, e ele queria fazer um filme de horror. Mas esses horrores saíram, na minha opinião, dados ao pouco conhecimento de cinema que ele tinha. Por isso que saiu essa coisa meio primária, no caso do Meia-Noite e do outro. E essa linguagem é que agradou. E teve o momento político que isso era importante. Hoje essa fita podia ser uma merda, não ia acontecer nada.
O Glauber, no livro dele que você deve ter lido, ele disse: "O único cara que presta em São Paulo é o Mojica". E ele nunca viu a fita do Mojica. Aí o Mojica ficou lá em cima. É aquela coisa do paternalismo da classe média que precisa exercer as suas caridades. Mojica é o coitadinho genial, porque o Glauber falou. E todo mundo passou a endeusar o cara. E ele, muito esperto e competente, adotou isso. Encarou, adotou e aceitou. E aceita até hoje. Eu, como motorista de caminhão, tentaram isso comigo. Eu falei: "Péra um pouco, vamos acabar com esse negócio. Motorista de caminhão é ignorante, é idiota, o que que é?" "O cara era motorista de caminhão e agora fez uma fita..." O que que isso tem de extraordinário. "Saiu da boléia e fez um filme" E eu falei "isso não é bem assim não". E eu desmanchei tudo isso. Senão ia ter que competir com o Mojica. Muita gente quis dizer que a fita era primitiva ou primária. Não é. Porque a primeira parte dela é o resultado, a estrutura de um roteiro que nunca ninguém fez. Ela caminha só de subjetiva em subjetiva (ele está falando do longa A Margem). A fita do Mojica é de qualquer um. A tomada entra quando acha que tem que enfeitar. E a minha não: um cara tá olhando pra um e aquele olha pra um outro, se os dois aparecem tem um terceiro, se ele tá sozinho... se por exemplo eu quiser fazer uma fita, eu estou aqui só (e começa a demonstrar um movimento de câmara subjetiva). Isso é um puta raciocínio. E isso te limita, ou você arruma o que contar ou está fodido. De repente eu estou aqui conversando com você e, pra dizer que é um boteco, estão lá os caras jogando sinuca, mas se eu tiver que mostrar que tem alguém jogando, eu ponho a mão aqui (de novo, n.d.e.), a máquina vira e pega os caras jogando. Aí, o cara quando olha pra bola, aí eu corto. Mas aí pra eu voltar pra ele alguém tem que olhar pra ele e eu volto.

Isso aí é uma questão de linguagem, de tentar mostrar sem ser supérfluo...
Não tem nada supérfluo. Isso foi tudo que não teve, muita gente ficou surpresa com isso. A primeira parte é inteirinha assim. São duas histórias e quatro personagens. Os personagens da primeira história são o Mário Benvenutti e aquela negona. Eu desmancho isso um pouco quando eu mostro aquela parteira, que aquela é um ente meio mítico, porque ela vê de costas, ela vê de qualquer lado, então quando ela olha pode mostrar qualquer coisa, necessariamente ela não tem essa limitação. É quando eu escapo da coisa, de propósito, não é por preguiça. A outra parte do filme já vai mais como deu certo. Mas também não está cheio de tomadinhas, assim, o que está lá tem sentido. Então logo não parece nada com o Mojica ou coisa nenhuma. Mas quase ninguém entendeu isso. Esse negócio de primitivo em cinema eu também acho meio difícil. Ser primitivo em pintura vai bem.

No cinema tem que controlar muita coisa, se filma primitivo tem que montar também...
Tem um monte, você depende de um monte de equipamento, um monte de cara que você tem que levar... Aquilo que um crítico, não sei se é um tal de Bernardo Carvalho disse, falou que uma fita do Babenco era a fita de qualquer um. Eu achei isso meio bom pra esclarecer umas tantas coisas. Porque tem filme que é isso, qualquer um que fizer bota o nome lá... Porque no cinema brasileiro pouca gente tem personalidade cinematográfica.

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