sexta-feira, 30 de janeiro de 2009

Entrevista com Ozualdo Candeias / Final

Por Ruy Gardnier (agosto de 1999)
BOCA DO LIXO, CINEMA
Quem você acha que surgiu desse movimento - nem foi um movimento, mas foi uma coisa que comercialmente teve um peso - da Boca, quem que você acha que apareceu daí que realmente tem valor? Nas entrevistas você fala que não existe um movimento da Boca, uma linguagem da Boca, que existiam várias pessoas fazendo cinema. Quem você acha que surgiu de valor daqui?
É, porque não há bem uma linguagem. Há um tipo de cinema porque por razões econômicas, ele teria que ter aquela característica e naturalmente tinha o problema que estava vendendo e que era a moda - o que há anos já tinha acontecido na Europa e que estava acontecendo aqui - essas liberdades sexuais, então passaram a usar o pornô. Então a crítica, pra avacalhar, começou a chamar pornochanchada, por causa da proposta erótica e a condição de produção mímima. Isso aqui me faz lembrar Almeida Garret, que disse: "Para se ser escritor, é muito simples. Basta ler fulano, ler fulano e ler fulano". Então você arruma um vilão, uma mulher bonita, uma bruxa e depois vai escrevendo que costuma dar certo. Você pode falar de Lisboa, você pode falar de Paris sem precisar ter ido lá, você vê os nomes dos botecos e escreve. Eu acho que isto muito se aplica a este cinema da Boca. Porque ele foi feito mais ou menos desse jeito. O cara ia no cinema, via lá um negócio e botava, ia em outro e assim por diante. Até certo ponto o cinema brasileiro é um pouco isso. Com algumas exceções, acho que com uma exceção de no máximo 20%, porque o resto é meio isso. Aqui tinha gente que chegava na moviola com cópia de filme para ver como é que dava para ir fazendo as tomadas. Então eu acho que o que o Almeida Garret fala da literatura serve aqui para um bocado de gente, porque você vê uma fita, são quase todas do mesmo jeito. Todas elas têm aquele negócio, o cara trepa na cama, o cara trepa em pé, o outro vai trepar na areia, a outra trepa no mar. Ou é traição. Tem uma estatística, esse tipo de fita mais ou menos chegou em 78 a pelo menos 4 milhões de espectadores. Coisa que hoje quando fala em milhão fica todo mundo de olho aberto. Então, o Mazza levava 10,5 milhões, a Xuxa numa delas 9 milhões, Trapalhões levaram quase igual numa das fitas... Pedro Rovai deve ter uma média, só ele, de 4 milhões. O Pedro parece que descobriu bem esse tipo de fita, ele começou com Adultério à Brasileira, que teve o Adultério à Italiana e parece que deu... Ele sabia como escolher o título... Agarro Essa Vizinha... e aqui o negócio era descobrir o título... Tanto que quando eu fiz Aopção, isso aqui já tinha ido pro buraco, um cara perguntou pra mim: "Qual é o nome dessa tua fita". Eu falei: "A fita é Aopção." "Opção?" "É." "E esse nome vai passar na censura?" Você vê que o cara pensou que eu arrumei um nome pra botar na fita... (risos) Andava por aqui um tal de Roberto Mauro, andou fazendo umas coisas, e agora parece que é pastor igual o Jece Valadão, sabe? Até eu vendi um roteiro pra ele e um produtor aí, e ficou até boa. Era uma fita de dupla personalidade. Claro que é um negócio meio complicado mas não ficou mal.
Qual é o filme?
Eu não me lembro o nome. Quem dirigiu foi o Roberto Mauro (trata-se, de fato, de Desejo Violento, de 1978). Eu vendi o roteiro para eles e a fita não ficou mal. E depois, teve aquela história dos marginais, etc. Quem começou meio com isso foi até o Roberto Santos. Ele chamava essas fitas, a minha também, de malditas. Então começou esse negócio de maldito e de repente virou marginal. Então eu acho que essas fitas deviam ser marginais porque tratavam de personagens marginais. Mas isso também foi uma, duas vezes, e aí acabou a coisa.
Foi um período curto.
Foi curto, tem uma meia-dúzia de fitas só. Eu acho que as minhas continuaram mais ou menos dentro dessa proposta. O Sganzerla e o Reichenbach fizeram filme aqui. O que você acha do trabalho deles? O Carlão fez uma produção aqui com o dinheiro do bolso dele, o segundo ou o terceiro longa dele, eu acho muito bom.
Lilian M?
Isso, Lilian M... Mas eu acho esse A Corrida em Busca do Amor a melhor coisa, sabe? Mas não serve muito de referencial porque é uma fita feita num tapa com ele e o Jairo Ferreira, mas que eu acho engraçada pra caramba eu acho. Acho bom pra burro aquilo. Ele e o Antônio Lima. Do Sganzerla eu tenho as minhas restrições porque não é uma fita feita com certas liberdades. E depois me parece que ela como um todo é um filme razoável, mas dependente muito do texto, sem o texto ela pode se acabar. E depois tem o referencial dela que é o cidadão da França... a fita é parecidíssima com Pierrot le Fou. O que é interessante na fita do Sganzerla é o comportamento dos atores, o assassino, o marginal, o malandro, o vagabundo, não é esse estereótipo que tem por aí. É um cara como outro qualquer, com as mesmas tristezas e as mesmas alegrias. E o Godard fez isso muito bem, eu gostei do filme dele. Acontece que tem uma fita, do cara que fez Bonnie and Clyde nos Estados Unidos.
Arthur Penn.
É, o Arthur Penn. Em Bonnie And Clyde ele já faz exatamente isso. Eu não sei se foi o Godard quem adotou esse comportamento marginal, ou se é o Arthur Penn. Nunca ninguém questionou isso, mas eu presto muita atenção nas coisas... O forte do Godard nessa fita é isso. Não é porque o cara está todo fodido, todo mundo querendo matar que... não! Você pega aqueles dois pós-adolescentes que são Bonnie e Clyde, e parecem de classe média em todas as suas atitudes, até morrer. Eu acho que isto é uma colocação, e que depois o Sganzerla fez a mesma colocação. É meio besteira minha, mas o que eu gosto mais dele é A Mulher de Todos. Me pareceu melhor e mais dele. Mas falam do Bandido, Bandido... e outra, a fita foi feita de bandido não foi por causa do bandido (o verdadeiro bandido da luz vermelha, caso dos noticiários da época), foi por causa da publicidade que estava nos jornais em cima do bandido da luz vermelha. Este pessoal, falavam que as fitas desse pessoal eram meio subterrâneas, e que começaram a chamar de udigrudi, de underground, e eram fitas com propostas acentuadamente comerciais e que iam pra censura e que nada tinham a ver com seu referencial que era o underground dos Estados Unidos. A única coisa que poderia ser com cara de underground são o ZéZero e o Candinho.
Você tirava elas da censura. Não era nem oficial a exibição delas...
Eu convidei esses caras pra gente trabalhar juntos, fazer uma meia dúzia delas, pra fazer frente à censura dos militares, mas ninguém topou. Falei com todos esses aí. Então eu pus a máquina nas costas e fui embora. Agora o Carlão (Carlos Reichenbach, n.d.e.) ainda me emprestou o estúdio dele, me emprestou moviola, uma porção de coisas. Um outro cara me emprestou a câmara pra eu filmar e a coisa foi feita mais ou menos assim. Fiz nas escolinhas do Mojica, fiz com outros atores, essa coisa toda, mas ninguém quis entrar comigo. Foi feita sem entrar na censura, era escondida. Quando era passado na faculdade eu levava outra fita... tinha um olheiro e, se ele desse o sinal, tirava o filme e botava desenho animado. Eu sabia que não ia dar certo. (fala de ZéZero) Os militares fizeram a loteca como uma grande coisa. Então o cara pra poder jogar na loteca, no caso de um operário, tem que jogar todo o salário e morrer de fome. E já antes tinha dito, essa loteca dá ou não dá? Então quem é o responsável? Essa loteca era uma enganação, não tem outra, sabe? E o Candinho é um cara que eu ouvi dizer, que o padre disse pra ele, que quando ele estivesse fodido, que procurasse Deus e ele resolvia. Isso é baseado numa música peruana. Mas não é muito incaica, é misturada, entre espanhola e inca, que fala desses mineradores. Então eu fiz isso, tem um cara que está com a família fodida, o dono da família joga ele fora, ele sai e o padre dá um santinho pra ele, ele olha a reza, faz, vai na igreja. Então ele, com o santinho, anda por São Paulo, por todo canto, e um tipo de chola anda com ele também. Chola é uma mestiça de incaica com espanhola. E andam os dois juntos para verem se resolvem a vida. E lá num dia ele desiste, sai andando e ouve Jesus Alegria dos Homens e segue a luz, essa música, e entra no lugar que foi no estúdio do Carlão. Como não tinha dinheiro pra fazer cenografia, disse então tá, e fiz com fundo infinito, aquela coisa toda que visualmente ficou bom. Quando ele vê o lugar onde tocava aquela música está o fazendeiro que tinha chutado ele pra fora estava falando com alguém que parecia com Deus, estão tomando café, numa boa, e os capangas estão juntos. Ele é meio imbecilóide e aleijado. Ele chega, vê aquilo, corre lá e Deus dá a mão pra ele, ele põe a mão, fica deslumbrado, vem o café e não dão café pra ele. O fazendeiro vira para o Deus, fala qualquer coisa, os caras ficam olhando. Quando ele sai ele já nem manca mais e já não está mais imbecil. Ele olha assim, vê longe uma cruz com uma metralhadora dependurada. Ele sai andando e chega na cruz e fica olhando. E a chola também chega. Aí eu ponho som de rajada de metralhadora. Só que ninguém teve coragem de fazer uma crítica de cinema. Agora eu vou mandar isso pra censura? (risos) Eu gosto muito mais do Candinho, bem mais do que o ZéZero, mais que o da loteca, bem mais. Por causa dos meus personagens eu fui preso, a polícia me pegou, mas tinha um cara que estava de longe vendo, ele escrevia no Estado, correu na polícia que eu já ia pro DOPS. Ele chegou na polícia e falou: "ele tá fazendo filme, não é nada disso não, eu estou assessorando ele", e me soltaram. Outra vez foi num viaduto, uma mulher chegou e perguntou "por que você está fazendo isso?" Só pra você ver, eu estava filmando, não foi com a exibição do filme não.
Você filma muito por aqui?
Não, só quando comporta. Por exemplo, em Aopção, dá pra entrar aqui.
Na parte da cidade...
Isso, tem aquele cara que anda com as duas pernas só pra cima, eu fiz aqui num boteco. E engraçado que todo mundo tem medo de falar de aleijado, mas o aleijado está nos meus filmes porque o único lugar onde ele pode se relacionar como aleijado é onde ninguém o trata com paternalismo nem com dó, que é onde ele pode existir. Tem um negócio que eu estou pra fazer, que se chama O Caixeiro Viajante Que Não Morreu, que eu dou idéia e explico que em todo lugar da zona, no tempo que viajante era o tal, os caras iam pra zona, porque lá não há muito preconceito, todo mundo vive lá e ninguém tem paternalismo. Nesses meus filmes, tem isso. E tem As Bellas da Billings, aquele cara que pede esmolas, ninguém entende bem. Pois bem, um cara todo fodido, pede esmola e tem empregado um cara que podia estar na produção. Quer dizer, aonde está o defeito? É numa sociedade toda errada. E este cara que podia estar trabalhando, não, está de óculos de walkman, e todo mundo ficou puto da vida comigo, porque ele vai na cama, põe ele nas costas, leva ele na privada... É onde o Calil fala, "como é que você põe um negócio desse?" E isso acaba chocando, porque ninguém quer ver isso, porque eu também trato esses aleijados sem paternalismo, está aí.
Você trata ele como um humano, como os outros não tratam até...
Em Aopção, ele está na mesa e o cara diz: "Lê essa carta aí pra mim", quando ele recebeu uma carta da Bahia. E o cara pergunta para ele "Escuta, mas você não sabe ler não?" E o outro responde "É que eu não trouxe os meus óculos..." Quer dizer, é um analfabeto. E tem aquele negócio, que baixinho, aleijado, só serve pra levar recado pra puta, né? Aí ele fala "Então leva isso aí pra fulana." E ele sai com aquilo na cabeça e a mãe disse: "É, a sua irmã vai bem, agora arrumou um emprego, disse que vai trabalhar lá em baixo, vai ser 'maratriz'". São coisas que acontecem, ele fez o serviço dele, foi levar o recado pra puta... enquanto o outro bebia, comia... Mas num dia em que eu já estava fazendo a fita, cheguei ali e tinha um cara que não tinha braço nem perna, um toquinho de gente, ele estava comendo lá aí eu paguei a comida dele e filmei. Mas comporta. No Vigilante é diferente, não tinha, eu não vou fazer esse negócio. E tem aquela homenagem aos caras que eu faço, que tem o Carlão, tem não sei quem, e o cara fala: "Esses são os marginais", tal e coisa...

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